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Foto: Valmir Singh |
Há
muitas pessoas que sofrem do mal da solidão. Basta que em redor delas se arme o
silêncio, que não se manifeste aos seus olhos nenhuma presença humana, para que
delas se apodere imensa angústia: como se o peso do céu desabasse sobre sua
cabeça, como se dos horizontes se levantasse o anúncio do fim do mundo.
No
entanto, haverá na terra verdadeira solidão? Não estamos todos cercados por
inúmeros objetos, por infinitas formas da Natureza e o nosso mundo particular
não está cheio de lembranças, de sonhos, de raciocínios, de ideias, que impedem
uma total solidão?
Tudo
é vivo e tudo fala, em redor de nós, embora com vida e voz que não são humanas,
mas que podemos aprender a escutar, porque muitas vezes essa linguagem secreta
ajuda a esclarecer o nosso próprio mistério. Como aquele Sultão Mamude, que
entendia a fala dos pássaros, podemos aplicar toda a nossa sensibilidade a esse
aparente vazio de solidão: e pouco a pouco nos sentiremos enriquecidos.
Pintores
e fotógrafos andam em volta dos objetos à procura de ângulos, jogos de luz,
eloquência de formas, para revelarem aquilo que lhes parece não só o mais
estático dos seus aspectos, mas também o mais comunicável, o mais rico de
sugestões, o mais capaz de transmitir aquilo que excede os limites físicos
desses objetos, constituindo, de certo modo, seu espírito e sua alma.
Façamo-nos
também desse modo videntes: olhemos devagar para a cor das paredes, o desenho
das cadeiras, a transparência das vidraças, os dóceis panos tecidos sem maiores
pretensões. Não procuremos neles a beleza que arrebata logo o olhar, o
equilíbrio de linhas, a graça das proporções: muitas vezes seu aspecto – como o
das criaturas humanas – é inábil e desajeitado. Mas não é isso que procuramos,
apenas: é o seu sentido íntimo que tentamos discernir. Amemos nessas humildes
coisas a carga de experiências que representam, e a repercussão, nelas
sensível, de tanto trabalho humano, por infindáveis séculos.
Amemos
o que sentimos de nós mesmos, nessas variadas coisas, já que, por egoístas que
somos, não sabemos amar senão aquilo em que nos encontramos. Amemos o antigo
encantamento dos nossos olhos infantis, quando começavam a descobrir o mundo:
as nervuras das madeiras, com seus caminhos de bosques e ondas e horizontes; o
desenho dos azulejos; o esmalte das louças; os tranquilos, metódicos
telhados…Amemos o rumor da água que corre, os sons das máquinas, a inquieta voz
dos animais, que desejaríamos traduzir.
Tudo
palpita em redor de nós, e é como um dever de amor aplicarmos o ouvido, a
vista, o coração a essa infinidade de formas naturais ou artificiais que
encerram seu segredo, suas memórias, suas silenciosas experiências. A rosa que
se despede de si mesma, o espelho onde pousa o nosso rosto, a fronha por onde
se desenham os sonhos de quem dorme, tudo, tudo é um mundo com passado,
presente, futuro, pelo qual transitamos atentos ou distraídos. Mundo delicado,
que não se impõe com violência: que aceita a nossa frivolidade ou o nosso
respeito; que espera que o descubramos, sem anunciar nem pretender prevalecer;
que pode ficar para sempre ignorado, sem que por isso deixe de existir; que não
faz da sua presença um anúncio exigente” Estou aqui! estou aqui! “. Mas,
concentrado em sua essência, só se revela quando os nossos sentidos estão aptos
para descobrirem. E que em silêncio nos oferece sua múltipla companhia,
generosa e invisível.
Oh!
se vos queixais de solidão humana, prestai atenção, em redor de vós, a essa
prestigiosa presença, a essa copiosa linguagem que de tudo transborda, e que
conversará convosco interminavelmente.
Cecília
Meireles
Belíssimo texto!!!
ResponderExcluirMuito obrigada Valmir!!! Grande abraço!!!
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